Não sei por que razão, mas, ao ler a petição de habeas corpus imaginei-me lendo o capítulo inicial de "A Metamorfose", em que o insuperável Kafka descrevia a transformação de Gregor Samsa num inseto monstruoso: "Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade." O paralelismo dos absurdos estava, portanto, estabelecido.
Curioso e ávido do desafio a que a petição estimulava, fui, aos haustos, deixando-me levar pela incursão no território da absurdez. Em minha mente, porém, acostumado a lidar cartesianamente com o direito ortodoxo, confesso que não conseguia entender como a corajosa impetração haveria de contornar os obstáculos para demonstrar a possibilidade jurídica do pedido.
Depois de proceder a uma análise do escorço histórico do instituto do habeas corpus, e de demonstrar como os direitos sociais foram sendo assegurados, além da ocorrência de mudanças significativas da sociedade, a impetração se depara com o primeiro grande entrave para o conhecimento do pleito: é que a Carta Magna, ao dispor sobre o instituto do habeas corpus, assim se expressa: "Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder".
Ora, como contornar a exigência legal constante do vocábulo "alguém", considerando-se que a paciente é uma chimpanzé? A cada instante, pois, a petição se tornava mais kafkiana. Segundo o léxico, o vocábulo "alguém" apresenta os seguintes significados: "alguma pessoa; determinada pessoa; pessoa de relevo intelectual ou social; ente, pessoa".
Na ignorância do meu pensamento tradicional, não me parecia que a definição da etiologia do termo pudesse ser atribuída à espécie animal. Considerar-se uma chimpanzé como alguém, seria, não há negar, dar uma forma de interpretação muito alargada, diria mais, de um surrealismo incrível, inaceitável, sobretudo partindo do respeitável órgão do Ministério Público. Mas a petição ali estava, era real, existia mesmo.
A impetração insistia na inacreditável idéia de que o macaco em nada difere da pessoa humana, podendo, por isso mesmo, ser considerada, igualmente, pessoa. Logo, sendo pessoa, conseqüentemente, sendo alguém, poderia beneficiar-se da previsão constitucional, que exige como paciente de habeas corpus pessoa humana.
Pois bem. Mas a impetração não ficou por aí. O segundo ponto que teria de superar, seria considerar ilegal a prisão a que se achava submetida a chimpanzé.
Sob esse aspecto, partiu-se de uma constatação real, qual seja, a de que ela se encontrava "presa" (?) numa jaula com área total de 77,56 m2, o que, segundo se alegou, seria insuficiente para abrigar a primata (!), pode-se dizer, consangüínea dos hominídeos.
O local da prisão não era outro lugar senão o Jardim Zoológico.
Incompreensível, portanto, a irresignação do MP em comento, já que a chimpanzé não se encontrava nem no Presídio de Salvador – onde ficam os presos provisórios-, muito menos na Penitenciária Lemos Brito – onde permanecem os presos já condenados-, menos ainda em qualquer cela de Delegacia de Polícia, mas, no zoológico.
Mais intrigado fiquei ainda quando imaginei que só a chimpanzé "Suíça" estava tendo esse privilégio de obter o patrocínio do Ministério Público para "relaxar " a sua prisão dita ilegal. Creio que os demais animais deveriam ter direito à extensão da ordem de hábeas corpus, uma vez concedida.
Aliás, não apenas os macacos, mas, igualmente, os leões, os elefantes, as girafas, os hipopótamos, e porque não, os veados.
Bem, mais não é só isso. Há um outro aspecto decorrente de adotarmos essa visão vesga do MP da Bahia: é que sendo a chimpanzé considerada sujeito de direito, evidentemente que deverá ser também sujeito de deveres, e como tal, penalmente imputável. Assim, não demoraria o legislador mais afoito, dentro do ritmo esquizofrênico de como as leis são elaboradas em nosso país, a querer alterar o Código Penal para incluir o tipo do "macaquicídio", ou seja "tirar a vida de macaco". Ou, o que seria igualmente temerário, um tipo penal associado ao crime próprio, que só poderia ser praticado pelo macaco.
No final do mandamus, mais curioso fiquei ao constatar que o impetrante pedia a concessão da ordem nos seguintes termos: "a paciente espera e confia na concessão do pleito" Fico a imaginar que decepção seria para ela a denegação do pedido...
Diante de tudo isso, sendo eu o juiz - e ainda bem que o não sou - e fosse competente para julgar esse sui generis hábeas corpus, já que teria de indeferi-lo, mas, preocupado com a reação imprevisível da chimpanzé, e no intuito de consolá-la não poderia dar outra decisão, a não ser aquela que lhe destinasse...
uma banana...
Como diria Otávio Mangabeira: "Pense no absurdo, na Bahia há precedente".
Sérgio Habib - professor da Universidade Federal da Bahia
HABIB, Sérgio. O macaco, o Direito, o Ministério Público e o instituto do habeas corpus . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 872, 22 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2009.